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Fixação de competência no direito brasileiro e foros concorrentes

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A preocupação com a identificação do juízo competente para o processamento de uma demanda decorre da necessidade de se assegurar que o responsável por seu julgamento seja definido em um momento anterior à instauração do processo. Em todas as tentativas de conceituação do devido processo legal desponta a presença da garantia do juiz natural que, dentre outros sentidos, compreende a vedação à designação de um julgador para a causa após a sua instauração.

Para que se assegure o devido distanciamento do julgador ao objeto daquilo a que ele é chamado a decidir, é preciso garantir que o processo seja distribuído por normas pré-estabelecidas, pois só assim é possível evitar que um julgador assuma a condução de um processo por possuir algum interesse em seu resultado. Por isso, um sistema preocupado com a imparcialidade na aplicação do direito deve dispor de uma disciplina para atribuição de competência a cada órgão jurisdicional segundo pressupostos objetivos. Nesse sentido, é preciso identificar quais são os requisitos utilizados pelo direito brasileiro para distribuição de competência entre seus órgãos jurisdicionais, bem como os interesses que cada um desses requisitos visa a resguardar.

Antes de investigar o sistema de distribuição de competência entre os órgãos jurisdicionais nacionais, é preciso conhecer de antemão as normas que delimitam a atuação da jurisdição brasileira ante a de outros países. Os arts. 21 e 22 do Código de Processo Civil estabelecem hipóteses que justificam “a princípio” a atuação da jurisdição nacional.[1]

Diz-se “a princípio”, pois as causas mencionadas nesses artigos podem também ser apreciados por outros Estados (competência concorrente) e, além disso, o juiz brasileiro pode declinar de sua jurisdição, caso se demonstre que o processamento da causa, ainda que prevista em um desses artigos, seja ineficiente à luz do funcionamento da jurisdição brasileira.[2] Em contraposição a isso, tem-se casos taxativos, previstos no art. 23 do Código de Processo Civil,[3] em que o interesse da jurisdição brasileira é tão relevante que não se admite concorrência ou derrogação (competência exclusiva).

Da mesma maneira, no âmbito da competência interna, sobressai a relevância de se conhecer os interesses que subjazem as normas de fixação de competência, quando se contrapõe a disciplina das normas instituídas em atenção ao interesse público (competência absoluta) com as normas que determinam a fixação de competência em atenção a um presumível interesse das partes (competência relativa).

As normas que determinam o regime da competência absoluta o fazem a partir de algum elemento presente na demanda capaz de despertar o interesse público em seu julgamento, de modo que as partes não podem dispor a esse respeito.[4] Isso significa que, pendente processo perante juízo absolutamente incompetente, ele reconhecerá esse vício a qualquer tempo e independente de prévia alegação das partes.

Situação diversa, no entanto, ocorre nos casos em que se recorre a elementos da demanda que dizem respeito ao interesse das partes para definição da competência. Nesses, está-se diante de um conjunto de normas que compõem o denominado regime da competência relativa. Esse regime permite às partes, quando lhes convier, modificar os critérios que predeterminam a fixação da competência, pois esses critérios são estatuídos com o propósito de tutelar um presumível interesse exclusivo delas.

É o que se passa, por exemplo e ordinariamente, com os casos de competência territorial. Prevê-se como regra geral que a competência para o processamento de uma demanda pertence ao local do domicílio do réu, pois assim se presume colaborar com o acesso à justiça dessa parte que no início do processo se encontra em uma situação de desvantagem em relação ao autor. Essa, no entanto, como dito, é apenas uma presunção. Nada impede que as partes, por motivos que apenas a elas dizem respeito, renunciem a essa situação de vantagem.

Outros exemplos de critérios adotados para fixação da competência com o propósito de tutelar interesses exclusivos das partes podem ser encontrados no Código de Processo Civil e na legislação esparsa. Assim, no Código de Defesa do Consumidor, prevê-se que a parte hipossuficiente, ao propor uma demanda, pode optar pelo foro de seu domicílio, pelo foro do domicílio do réu ou do local de cumprimento da obrigação ou ainda pelo foro de eleição contratual, facilitando-se, assim, o seu acesso à justiça.

Do mesmo modo, no Código de Processo Civil, estabelece-se que a vítima de um acidente aéreo ou de veículo pode propor a demanda em seu domicílio para ter facilitado o exercício de seu direito de ação e que a ação de alimentos pode ser proposta no foro do domicílio ou de residência do alimentando, já que quem necessita de alimentos deve ter viabilizado o seu acesso ao provimento jurisdicional.

Identifica-se a mesma discussão, ainda, nas questões que versam sobre a competência territorial relativa ao processamento de demandas previdenciárias, propostas pelo beneficiário. Relembre-se que a Constituição Federal de 1988, no seu art. 109, §2º, dispõe que, nos processos em que a União figure no polo passivo, o autor poderá optar pelo ajuizamento da demanda na seção judiciária de seu domicílio, no foro de ocorrência do fato ou de situação da coisa e, ainda, no Distrito Federal.

Apenas lateralmente, cumpre mencionar que, muito embora o artigo ora citado discipline a competência territorial referente a processos ajuizados contra a União, trata-se de disposição de competência relativa. Em outras palavras, referida competência não pode ser alterada de ofício e será prorrogada na ausência de impugnação pela parte.[5]

Essa disposição constitucional tem respaldo precisamente na lógica de que, à parte hipossuficiente, deve ser garantido o acesso à justiça. Nesse diapasão, o ordenamento jurídico permite que o cidadão se valha, dentre as hipóteses constantes do rol fixado em lei, do foro em que lhe seja menos penosa a busca pela tutela jurisdicional.

Ocorre que, quando da promulgação do Código de Processo Civil de 2015,
optou-se por determinar que o autor, nas causas ajuizadas perante a União, deve propor a ação no foro de seu domicílio, no de ocorrência do ato ou fato que originou a demanda, no de situação da coisa ou no Distrito Federal. Veja-se, portanto, que ao invés de facultar ao autor a possibilidade de demandar em qualquer vara da seção judiciária de seu domicílio, o CPC/15 teria aparentemente restringido os foros competentes para ajuizamento de demandas contra a União.

Fala-se, aqui, em restrição porque na mesma seção podem existir subseções que eventualmente abranjam a região de domicílio autor. Sendo assim, o CPC teria determinado que o autor se ativesse única e exclusivamente a um foro, afastando-o dos outros que compõem a seção judiciária.

A esse respeito, e especificamente quando se adentra na seara das demandas previdenciárias, a questão da fixação da competência se torna ponto sensível, uma vez que as seções judiciárias contam as varas especializadas no tema, que, contudo, não necessariamente integram a subseção de domicílio do beneficiário. De acordo com a Constituição, portanto, o autor poderia se valer das varas especializadas, ao passo que, sob uma interpretação restritiva do dispositivo constante no CPC, o foro da subseção seria o único competente para processamento de suas demandas.

Para resolver o aparente conflito de normas, deve ser considerada não apenas a expressa disposição constitucional, como, ainda, a lógica protetiva que se encontra por trás desta, já que, como se sabe, não pode a lei infraconstitucional opor-se à Carta Magna. Dito isso, reputa-se como viável o ajuizamento da demanda em qualquer um dos foros competentes, a critério do autor. Isso porque, na busca pela facilitação do acesso material à justiça, é possível que a parte hipossuficiente escolha ajuizar a demanda em local mais afastado do seu domicílio, mas que, precisamente em virtude da especialização, profira decisões mais técnicas, mais justas.

Tal raciocínio foi inclusive consubstanciado por meio da Súmula nº 689 do Supremo Tribunal Federal, que determina que: “o segurado pode ajuizar ação contra a instituição previdenciária perante o Juízo Federal do seu domicílio ou nas Varas Federais da capital do Estado-membro”. Não prospera, assim, qualquer entendimento em sentido diverso, posto que este iria de encontro tanto à própria Lei Magna, quanto à interpretação da Corte Constitucional.

Além disso, importa ressaltar que, quando se atribui a competência a um foro especial em favor de uma das partes com a intenção de lhe resguardar um determinado interesse, oferece-se a ela então a opção de se valer dessa situação de vantagem ou não. Vale dizer, a previsão de um foro especial não o torna exclusivo, podendo a parte beneficiada renunciar a ele para se submeter a outras regras de fixação de competência. A ratio do argumento em questão é a mesma que inspira a teoria das nulidades e o princípio da instrumentalidade das formas no processo civil. Como se sabe, a instituição de toda forma visa a tutelar um determinado interesse. Isso não significa que se estabeleça uma relação incindível entre eles.[6]

Um interesse pode ser preservado ainda que a norma estatuída em seu favor não tenha sido observada. Nesses casos, passa a ser injustificada a aplicação de qualquer sanção decorrente disso, porque o fim último que se almeja alcançar foi atingido. Em matéria de competência, isso significa que, se a parte opta por um juízo diferente daquele que a lei previu como mais favorável a ela, em atenção à autonomia da vontade das partes, deve-se reconhecer a competência do foro eleito, desde que ele também se mostre adequado ao interesse da parte e que essa escolha não represente um abuso do exercício de direito ou ato de má-fé.

Não obstante, admitir a competência de mais de um juízo para o processamento de uma causa e reconhecer que a parte beneficiada por isso tem o direito de realizar uma escolha dentre eles, não significa permitir que isso se transforme um ardil para prejudicar a parte contrária. Assim, para justificar a escolha de um juízo a parte deve demonstrar que ele tanto atende a seu interesse, como também que ele não prejudica o exercício do direito de defesa da parte contrária.

Para designar esse juízo que decorre de uma legítima escolha do autor dentre os diversos foros competentes e que ao mesmo tempo não dificulta o exercício do contraditório pela parte contrária utiliza-se o termo competência adequada. Trata-se de verdadeiro princípio jurídico, que se traduz na concepção mais flexível da competência, e que se presta a conciliar garantias e eficiência no processo jurisdicional.[7] E é precisamente sob o prisma do referido princípio que se justifica a possibilidade de que, diante de foros concorrentes, o autor possa optar por aquele que melhor lhe convier, desde que impulsionado por motivo legítimo.

Nesse contexto, quando da fixação da competência no Direito brasileiro, é preciso considerar não apenas o que está expresso em lei, mas, também, as questões referentes ao acesso à justiça, às garantias fundamentais e, finalmente, à eficiência processual. A competência verdadeiramente adequada, capaz de ensejar a pacificação justa dos conflitos, surgirá apenas se forem conjugados todos esses elementos.


([1]). In verbis: “Art. 21. Compete à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações em que:

I – o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;

II – no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação;

III – o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil.

Parágrafo único. Para o fim do disposto no inciso I, considera-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que nele tiver agência, filial ou sucursal.

Art. 22. Compete, ainda, à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações:

I – de alimentos, quando:

  1. a) o credor tiver domicílio ou residência no Brasil;
  2. b) o réu mantiver vínculos no Brasil, tais como posse ou propriedade de bens, recebimento de renda ou obtenção de benefícios econômicos;

II – decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil;

III – em que as partes, expressa ou tacitamente, se submeterem à jurisdição nacional”.

([2]). Sobre o tema, ver: BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Teses, estudos e pareceres de processo civil, v. 2, São Paulo: RT, 2005.

([3]). In verbis: “Art. 23. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:

I – conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil;

II – em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação de testamento particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional;

III – em divórcio, separação judicial ou dissolução de união estável, proceder à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o titular seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional”.

([4]). CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência, 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 108.

([5]). Nesse sentido, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes destaca que: “Nada há de plausível a justificar, na espécie, tratamento diverso do ministrado pelo sistema processual brasileiro, apenas para a União, quanto á relatividade da competência territorial”. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Competência cível da justiça federal, 4ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 121.

([6]). Ver: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Competência cível da justiça federal, 4ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 121.

([7]) CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competências no processo civil. Tese de Titularidade – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017, p. 372.